As histórias, crônicas, contos, causos. Exercícios de eloquência.

Wednesday, September 06, 2006

O Fabuloso Quito contra o monstro da vida ordinária.


Mas eu desconfio que a única pessoa livre, realmente livre, é a que não tem medo do ridículo (Luis Fernando Veríssimo)



Dignei-me a narrar esse “causo”, não para atrair os holofotes da mídia fútil e hedonista ou para epigrafar meu nome na história – coisa das idiossincrasias ególatras – coisa do ranço da pequena burguesia. Mas puramente pela relevância científica e para que não se corrompam os fatos na embaçada lente da tradição oral e se retrate fantasiosamente o que realmente aconteceu. Eu posso fazer isso, eu vi, eu estava lá. Eu presenciei a verdade nua, crua, cuspida e escarrada.

Era, aquela quinta-feira, tão insossa como todos os outros dias dos últimos tempos. Havia sobrevindo um úmido calor de fazer deitar para as partes íntimas do corpo, os gotejos de suor. Era mormacenta a atmosfera na nossa pacata e belezura de cidade. Só para variar nada para se fazer. A não ser... Deixa p’ra lá, talvez uma partida de "Street fight" no bar da Lurdes. Isso havia passado na cabeça de Quito, mas uma partida de 'Street fight" neste calor não apetece nem ao mais dos adeptos. E depois, na última vez que havia jogado, não deu “carga” nem para o Théo Aranha. Para quem não sabe, o Théo é "marreco", como se diz na gíria. E isso quer dizer que o sujeito carece de habilidade para o jogo (o sujeito é horrível, mesmo!). É..., nada de interessante para se fazer! Pelo jeito é deixar hoje para amanhã. E assim foi... com seu vagar.

A noite caíra e com ela um bruto temporal mostrava a cara com relâmpagos que riscavam o céu em todo quadrante oeste, de onde desce o Rio Doce, lá pelas bandas das Minas Gerais, estado de uma garota chamada Juliana (que já lhe fizera tempestades de emoções, numa tórrida temporada de férias de verão, no balneário de Guriri). ... Aquela noite fora a que mais chovera desde que me entendo por gente. Até os sapos, se alcançassem a crença dos homens, rezariam p’ra chuva dar um tempo!

O dia amanhecera em feições de luz perfeita. Chegava a ter que se franzir testa para fixar uma olhada. Dia com compasso de pescaria. Há tempos, num desses ociosos papos de bar, ele havia combinado uma pescaria com uns camaradas. Mas eram tratantes, tipos que só balangavam beiços. Agora já decidira: Iria sozinho. Seria na Lagoa do Zé Branco, que fica bem perto do bairro Maria das Graças. O Tairone, um sujeito que dava uns contornos extravagantes à vida com uma imaginação fantasiosa, dissera demais de vezes que naquela lagoa vivia uma monstruosa criatura, como aquela das gélidas águas do Lago Ness, na distante Escócia. Mas quem poderia dar crédito aos ditos do Tairone? Ademais, da Escócia lhe apetecia lembrar do eletrizante Sean Connery, em Indiana Jones, do Ewan MacGregor em “Por uma vida menos ordinária” – um filme deliciosamente poético e carregado de crítica às relações humanas. Ah, ele não poderia deixar fora das lembranças evocados por aquele país onde tem macho que usa saia, de Ivanhoé, a estupenda obra de Sir Walter Scott. Contrariamente ao que se poderia pensar de uma criatura que perdia tempo com games , ele apreciava sobremodo uma literatura, não da literatura de gosto duvidoso que é para indivíduos de sentidos obliterados pela mídia ruidosa e fácil. Pois Ivanhoé, uma obra que não narra ações estúpidas e gratuitas, fizera-lhe viajar pelas florestas da Inglaterra medieval do Rei Alberon, a sentir imaginariamente o perfume dos carvalhos. Lembrou-se também de que na Escócia faziam uns uísques... Mas basta de divagações, assim de cara limpa não dava para lembrar sem constrangimentos dos stripteases que os scotts lhe inpiravam. Bastava de divagações. À merda a maravilhosa Escócia, à merda o Tairone. Já começava a ficar nervoso, tinha que pescar.

Os juncos em torno da lagoa reverberava ao sol um gracioso verde que parecia ter uma vida própria. Havia um silêncio de voz humana até onde a melhor audição de gente de carne e osso pudesse ouvir. Sentado numa pedra à margem da lagoa, com uma vara na mão, pescava com o silêncio. Quito conseguia ouvir as batidas do seu grande e suscetível coração. Ultimamente ele estava assim: "sensível e manso". Esse jeito manso lhe acometera desde o dia em que, em companhia do Frangão, numa dessas viagens de entregas de uns "produtos" que não sei bem dizer, possivelmente pó de café – para as cidades do interior, e fazia uma insistente chuva miúda a mistura a um sol empalidecido, de forma que um arco-íris estampou-se bem para cá do horizonte, logo ali à frente, na rodovia, formando uma semicircunferência. Eles passaram com o carro sob aquela profusão de cores. O Frangão até relutou um pouco em transpor, mas o Quito não teve um pingo de paciência para esperar dissipar o multicolorido fenômeno atmosférico (quem conhece o Quito entende bem o que digo, ele achava aquilo uma inútil e inócua superstição – coisa de bestão). Foi dali em diante que começou a sentir um frisson por dentro e adquirira um certo sexto sentido. Sexto sentido que antes achava ser coisa de moçoilas e da turma da “parada”. E a despeito da total paz daquele lacustre mundo que o circundava, sentia que algo diferente estava por acontecer ali. Já não tinha dúvida disso. As pupilas, em seus castanhos olhos, dilataram-se.

Para se acalmar tentou recordar-se da última vez que havia pescado. Lembrava claramente: fisgou um morobá de oito quilos e um pequeno caborreleque, do qual até então não se tinha registro da espécie nos compêndios da biologia e tampouco fazia parte das estórias de pescadores. A sua avó (que Deus a tenha!), havia falado que os raros e famigerados caborreleques, depois que aprendiam a escalar as pedras da beira das águas, cresciam muito e até chegavam a gigantes, causando transtornos, pois devoravam todo roçado de milho, feijão ou o jiló marginal. Aliás, jiló parecia o preferido deles, não sobrava nem os talos. Tolices da avó eram perfeitamente perdoáveis. Mesmo com conversas pra boi dormir sobre peixe que anda e come jilós, a velha era para ele um doce.

Mas bom mesmo era pensar nas mulheres que havia amado. Era a única coisa que o agradava e não exigia esforço mnemônico, ainda mais pitando um cigarrinho. É claro que devo dizer que estamos falando daquelas dos últimos dois anos. Porque lembranças do Ritão, além de exigir da memória, seria um exercício penoso e de gosto duvidoso. Mas ele pensou na bendita. (Caro leitor, você deveria conhecer o Quito para melhor compreender). (...)

Enquanto pensava nessas coisas, abruptamente o débil silêncio fora quebrado por intrigantes espocares de borbulhas na lagoa. As borbulhas faziam um rastro na superfície da água para a direção onde o nosso fabuloso e estimado amigo pescava. Para sua surpresa e horror, uma grande e sinistra criatura de aspecto aquático, de pele acinzentada e com barbatanas, irrompeu das águas soltando finos grunhidos, vindo em direção à mochila, onde estava guardado o lanche que levara, que consistia em um hambúrguer, leite e um litro de campári (o Quito sempre teve o estranho hábito de tomar leite misturado ao campári). “Vixe, mangalô três vezes!” – Grita o nosso herói, num misto de estupefação e horror – Sai pra lá "demonho" – continua ele no desespero. O peixe-monstro, sem se importar com a reação do atordoado humano ou a qualquer outra coisa, retira da bolsa sem qualquer obstáculo, o litro de campári, provocando uma súbita e impetuosa mudança do terror para raiva e brabeza. Uma cólera de deixar até o branco do seus olhos avermelhados, como eram os ancestrais pré-históricos dos homens, como atestam os evolucionistas. – Filho duma Elza! Se você quiser comer o hambúrguer que seja, vai fundo, mas o campári não! "Ce" acha que ‘tá podendo?– Esbravejou. Notando que a criatura lhe ignorava, não “dava idéia", nem um biquinho fez ao menos, Quito entra de soco, mas antes que uma direita entrasse no ventre do animal, para atingir ao menos um rim, se é que aquela unidade biológica tivesse algum, um golpe de agilidade supersônica atinge-lhe o pescoço, bem perto da orelha, é o que comumente chamamos de “moca”. Estatelado no chão lamacento, mas com um pouco de dignidade, ele se levanta atônito e ainda tenta uma reação, no entanto, antes de erguer os punhos cerrados, toma uma baita bifa. “Se eu pudesse pegar um poder” – pensa ele em meio ao desespero e à lama – Mas aquilo era pura e dura realidade e não uma partida de “streat figth”. Nisso o bicho da água bebia em grandes goles o campári, como quem tem sede de muito. Depois de algumas tragadas a "coisa" deixou escapulir das rudes mãos palmípedes o objeto da contenda. Foi aí que Quito, numa agilidade sobre-humana pegou o litro e com o mesmo atingiu um golpe na altura do provável rim do parrudo oponente, que tombou feito madeira verde – Você perdeu, playboy! Você perdeu! Foram as suas palavras de vitória.

Enquanto olhava para aquele capeta ofegante, ali no chão, passa correndo numa trilha, a poucos metros, um sujeito baixinho de nariz saliente, usando um chapéu australiano camuflado militar – Ei, Fonsinho, venha cá ver que desgraça é essa! – Grita o Quito - Baco, paco, baco, Quito, seu burro "véio", que peixe gigante e esquisito que você pegou! Acho que só o sargento Gérson pegaria um igual! Porque o Sargento Gérson uma vez..., outra vez... Isso é um celacanto, Quito, um peixe que julgavam ter sido extinto e que a espécie tem trezentos e sessenta milhões de anos. Eu sei porque passou no “Jornal Nacional” dia desses. Qualquer dúvida pode perguntar ao sargento Gérson. Agora você pode ser chamado também de o pescador da "moda". Mas já vou, pois estou em treinamento militar e quero ser mais forte que mil quatis, como é o sargento Gérson, você vai ver só! Enquanto Fonsin sai em seu desiderato, Quito vira-se para olhar a criatura e vê somente o rastro de retorno às águas e borbulhas ao longe nas águas da lagoa. “Vou embora já e só volto aqui algum dia, se trouxer o arpão irado do pai do Rodrigo Porção. Vai que eu encontre novamente esse caborreleque gigante e tenha que acabar com a raça dele” – pensou ele com a casa dos seus botões, pois os botões mesmo haviam se perdido na batalha.

Chegando em casa, depois de um bom banho com o seu preferido sabonete de Erva-Doce Espumante (um gosto manifesto após o arco-íris) não quis ver o que talvez fosse o milésimo filme que havia locado neste ano de nosso Senhor Jesus Cristo, pois certame veria cenas em que alguém teria uma arma à mão. Preferiu ir à casa do Rosebol comer um angu incrementado, como o que é servido no Beliska, acompanhado da turma do bloco Kbeça Ativa. Mas para sua surpresa o prato do dia era moqueca capixaba. Pôxa vida – disse ele aos suspiros – há dias em que é difícil viver!

Foi para casa, e no seu quarto acendeu um incenso de carvalho, e rendendo-se à sétima arte, resolveu rever “Por uma vida menos ordinária”.





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